O que a mídia não mostra sobre a greve na USP

Hoje recebi um e-mail com o relato de um professor da EACH-USP que esteve na Cidade Universitária durante o ato do dia 09/06, onde estudantes, funcionários e professores foram agredidos por policiais militares da Tropa de Choque.

Estou abrindo uma exceção para tratar de um assunto que não tem ligação direta com os temas que normalmente abordo aqui porque considero importante fazer isso, mas aproveito para comentar um exemplo da péssima abordagem que a grande mídia tem dado ao tema.

Ontem, voltando da faculdade - é, a Escola de Artes, Ciências e Humanidades não só é UMA DAS POUCAS escolas da USP que não está em greve, como também vai decidir se adere ou não ao movimento em uma assembleia no dia 17/06, mesmo que a coisa já esteja "fervendo" há um bom tempo - ouvi as notícias do dia na BandNews FM, comentadas pelo "âncora dos âncoras" (sic), Bóris Casoy. Ele disse que a polícia estava no local para proteger o patrimônio público, porque a universidade não pertence a essa "minoria de radicais", e para garantir o direito democrático de ir e vir, para que quem quisesse ver aula pudesse ver e para que os professores que quisessem dar aula pudessem dar, já que a greve não é uma mobilização apoiada pela maioria.

Não lembro mais o que ele disse, mas nem preciso ir além. Estranho seria uma posição não reacionária vinda dessa máquina de falar besteiras que é o Bóris Casoy. Me deu vontade de gastar aqueles R$1,40 do "portal" SMS da emissora e enviar algo do tipo "Gosto da BandNews, apesar do Bóris Casoy" ou pelo menos um "Cala a boca, Bóris!", mas acabei não mandando nada.

Uma observação: antes que alguém chame a BandNews FM de CBN, vale ressaltar que, no dia seguinte, Ricardo Boechat comentou a mesma notícia de forma 1 milhão de vezes mais sensata: disse que os policiais (que justificaram as agressões como resposta às "provocações" dos manifestantes) representavam o estado e que, portanto, a reação violenta deles era a reação do estado, e uma reação a provocações que são previstas em qualquer manifestação.

Mas quero deixar o texto que comentei no início, do professor do curso de Gestão de Políticas Públicas da EACH, Dr. Pablo Ortellado, antes que eu me perca falando de mídia, como é de costume!

Hoje, as associações de funcionários, estudantes e professores haviam deliberado por uma manifestação em frente à reitoria. A manifestação, que eu presenciei, foi completamente pacífica. Depois, as organizações de funcionários e estudantes saíram em passeata para o portão 1 para repudiar a presença da polícia do campus. Embora a Adusp não tivesse aderido a essa manifestação, eu, individualmente, a acompanhei para
presenciar os fatos que, a essa altura, já se anunciavam. Os estudantes e funcionários chegaram ao portão 1 e ficaram cara a cara com os policiais militares, na altura da avenida Alvarenga. Houve as palavras de ordem usuais dos sindicatos contra a presença da polícia e xingamentos mais ou menos espontâneos por parte dos manifestantes.

Estimo cerca de 1200 pessoas nesta manifestação. Nesta altura, saí da manifestação, porque se iniciava assembléia dos docentes da USP que seria realizada no prédio da História/ Geografia. No decorrer da assembléia, chegaram relatos que a tropa de choque havia agredido os estudantes e funcionários e que se iniciava um tumulto de
grandes proporções. A assembléia foi suspensa e saímos para o estacionamento e descemos as escadas que dão para a avenida Luciano Gualberto para ver o que estava acontecendo. Quando chegamos na altura do gramado, havia uma multidão de centenas de pessoas, a maioria estudantes correndo e a tropa de choque avançando e lançando bombas de concusão (falsamente chamadas de "efeito moral" porque soltam estilhaços
e machucam bastante) e de gás lacrimogêneo. A multidão subiu correndo até o prédio da História/ Geografia, onde a assembléia havia sido interrompida e começou a chover bombas no estacionamento e entrada do prédio (mais ou menos em frente à lanchonete e entrada das rampas).

Sentimos um cheiro forte de gás lacrimogêneo e dezenas de nossos colegas começaram a passar mal devido aos efeitos do gás - lembro da professora Graziela, do professor Thomás, do professor Alessandro Soares, do professor Cogiolla, do professor Jorge Machado e da professora Lizete todos com os olhos inchados e vermelhos e tontos pelo efeito do gás. A multidão de cerca de 400 ou 500 pessoas ficou acuada neste edifício
cercada pela polícia e 4 helicópteros. O clima era de pânico. Durante cerca de uma hora, pelo menos, se ouviu a explosão de bombas e o cheiro de gás invadia o prédio. Depois de uma tensão que parecia infinita, recebemos notícia que um pequeno grupo havia conseguido conversar com o chefe da tropa e persuadido de recuar. Neste momento, também, os estudantes no meio de um grande tumulto haviam conseguido fazer uma pequena assembléia de umas 200 pessoas (todas as outras dispersas e em
pânico) e deliberado descer até o gramado (para fazer uma assembléia mais organizada). Neste momento, recebi notícia que meu colega Thomás Haddad havia descido até a reitoria para pedir bom senso ao chefe da tropa e foi recebido com gás de pimenta e passava muito mal. Ele estava na sede da Adusp se recuperando.

Durante a espera infinita no pátio da História, os relatos de agressões se multiplicavam. Escutei que a diretoria do Sintusp foi presa de maneira completamente arbitrária e vi vários estudantes que haviam sido espancados ou se machucado com as bombas de concusão (inclusive meu colega, professor Jorge Machado). Escutei relato de pelo menos três professores que tentaram mediar o conflito e foram agredidos. Na sede da Adusp, soube, por meio do relato de uma professora da TO que chegou cedo
ao hospital que pelo menos dois estudantes e um funcionário haviam sido feridos. Dois colegas subiram lá agora há pouco (por volta das 7 e meia) e tiveram a entrada barrada - os seguranças não deixavam ninguém entrar e nenhum funcionário podia dar qualquer informação. Uma outra delegação de professores foi ao 93o DP para ver quantas pessoas haviam sido presas. A informação incompleta que recebo até agora é que dois funcionários do Sintusp foram presos - mas escutei relatos de primeira
pessoa de que haveria mais presos.

A situação, agora, é de aparente tranquilidade. Há uma assembléia de professores que se reuniu novamente na História e estou indo para lá. A situação é gravíssima. Hoje me envergonho da nossa universidade ser dirigida por uma reitora que, alertada dos riscos (eu mesmo a alertei em reunião na última sexta-feira), autorizou que essa barbárie acontecesse num campus universitário. Estou cercado de colegas que estão chocados com a omissão da reitora. Na minha opinião, se a comunidade acadêmica
não se mobilizar diante desses fatos gravíssimos, que atentam contra o diálogo, o bom senso e a liberdade de pensamento e ação, não sei mais.

Por favor, se acharem necessário, reenviem esse relato a quem julgarem que é conveniente.

Cordialmente,

Prof. Dr. Pablo Ortellado
Escola de Artes, Ciências e Humanidades
Universidade de São Paulo

Veja um exemplo de como estava o clima na USP, em vídeo gravado durante o conflito.


Enquanto isso, o governador está ocupado atualizando seu Twitter, criado recentemente para fazer propaganda eleitoral antecipada (não tem cara de fake). Aliás, isso não era proibido?

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Comentários

  1. Noooosa, como lembra a UnB aqui. Agora, convenhamos mídia nenhuma daá tanto destaque 'a greve', negociação. Agora se houver barraco, como houve, aí sim, vira notícia. São os critérios que aprendemos de noticiabilidade.

    A carta está muito boa, agora difícil um veículo divulgar ou respaldá-la na íntrega, caberia a um artigo de jornal, possivelmente, algo mais opinativo.

    Agora, que assustou assustou. Aqui houve cobertura da mídia pq os estudantes invadiram o campus e se alojaram na reitoria. Enfim, ficaram e ficaram ... Da USP não sabemos muito, agora que há bardeneira, gente só pra zoar, não duvido mesmo. E a polícia estava lá no local, possivelmente chamada pela direção.

    Do Casoy: são comentaristas, radicais e frases feitas, sempre. Do Boechat eu gosto muito. Agora, há um na Bandnews Brasília que nem .... cara muito chato, fala do que não sabe. Portanto, fui parando de ouvir o rádio. hauhauah

    E, legal o vídeo!

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  2. A polícia foi chamada pela reitora!

    Um artigo do professor do Departamento de Filosofia da USP, Vladimir Safatle, foi publicado na sexta-feira passada (12/06) na Folha de S.Paulo. O texto fala melhor sobre a PM no campus e sobre a abordagem que a mídia tem dado. Segue o texto completo:

    "A universidade não é caso de polícia

    Aa cenas de batalha campal que vimos nesta semana na USP ficarão na memória daqueles que dedicam sua vida a essa instituição. Vários professores, como eu, que nunca participaram de movimento sindical, que nem sequer foram alguma vez a uma assembleia, veem com estarrecimento a disseminação da crença de que conflitos trabalhistas devem ser resolvidos apelando sistematicamente à polícia.

    Diz-se que a polícia era necessária para evitar piquetes e degradações. No entanto, tudo o que ela conseguiu foi acirrar os ânimos e aumentar exponencialmente os dois.

    Vale a pena lembrar que, por mais que sejam práticas problemáticas que precisam certamente ser revistas, os piquetes estão longe de se configurarem como ações criminosas. A história das sociedades democráticas demonstra como eles foram, em muitos casos, peças necessárias de um processo de ampliação de direitos. Cabe a nós provar que esse tempo passou e que, devido à capacidade de diálogo, tais práticas não têm mais lugar.

    No entanto, quando se tenta reduzir manifestantes que procuram melhorias em suas condições de trabalho a tresloucados patológicos que nada têm a dizer, que não têm nenhuma racionalidade em suas demandas, dificilmente alguma forma de diálogo conseguirá se impor.

    Melhor seria começar explicando qual racionalidade justifica que a universidade mais importante do país, responsável por parte significativa da pesquisa nacional, tenha salários menores que os de uma universidade federal em qualquer Estado brasileiro.

    Por outro lado, há algo incompreensível na crença de que a polícia possa ser chamada para mediar conflitos com alunos e funcionários públicos. Muitos acreditam que ligarão para o 190 e receberão uma espécie de "polícia inglesa" capaz de agir de maneira minimamente adequada diante de cidadãos que se manifestam.

    Contudo, o que vimos até agora foi uma polícia que entrou pela primeira vez no campus armada com metralhadoras, quando a ação padrão deveria ser, nessas situações, agir desarmada. Quem tem uma metralhadora nas mãos imagina que porventura poderá usá-la. Mas contra quem? Contra nossos alunos? E quem decidirá o momento de usá-la?

    (continua)

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  3. Como se isso não bastasse, uma polícia bem preparada não responde a provocações de gritos e latas com bombas de gás lacrimogêneo e balas de borracha usadas na frente da Escola de Aplicação e de uma faculdade em que, normalmente, há crianças e adolescentes. O que aconteceria se uma bala de borracha atingisse uma criança, ampliando um pouco mais o enorme contingente de balas perdidas disparadas pela polícia?

    Antes de ligar para a Polícia Militar, valeria a pena levar em conta seu despreparo manifesto em intervenções em conflitos sociais, histórico catastrófico mundialmente criticado por órgãos internacionais.

    Nenhum leitor terá dificuldade de se lembrar de situações de conflito social nas quais policiais que se sentiram acuados reagiram de maneira descontrolada, provocando tragédias.

    Por fim, contrariamente a certa ideia que um anti-intelectualismo militante gosta de veicular nestes momentos, vários alunos alvos de balas de borracha são extremamente dedicados em seus cursos, participam sistematicamente de colóquios e programas de pesquisa, apresentam "papers" em congressos e podem ser constantemente encontrados em nossas bibliotecas.
    Sendo certo que vêm de todas as faculdades de nossa universidade (e não apenas da área de humanas, como alguns querem fazer acreditar), é inaceitável tratá-los como delinquentes potenciais. Dentre os 2.000 estudantes que se manifestaram nesta semana estão alguns de nossos melhores alunos.

    Em vez de estigmatizá-los, talvez seja o caso de se perguntar contra o que eles se manifestam, já que, é sempre bom lembrar, antes da entrada da polícia, nem professores nem alunos estavam em greve. A greve restringia-se a funcionários.

    Há um mês, em uma pequena cidade francesa, a polícia recebeu um chamado de possível furto. Em uma atuação "exemplar", ela estava em alguns minutos no local do crime. No entanto, o local era uma escola, o objeto furtado, uma bicicleta, e o possível ladrão, uma criança de dez anos. Sem pestanejar, a polícia retirou a criança da escola na frente de seus colegas, levou-a à delegacia, colheu seu depoimento e a fichou.

    Possivelmente, foi contra esse modelo social baseado na incapacidade de resolver conflitos sem apelar à mais crassa brutalidade securitária que hoje nossos alunos se manifestam. Cabe a nós mostrar a eles que a história da USP é outra."

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