O espetáculo televisivo de Santo André

A semana passada foi marcada na televisão pelo mais longo caso de cárcere privado registrado no Estado de São Paulo. Lindemberg Fernandes Alves, 22 anos, invadiu o apartamento da ex-namorada Eloá Cristina da Silva, 15, na segunda-feira, fazendo quatro reféns, segundo relatório cronológico do Diário do Grande ABC.

O crime foi tão explorado pela mídia que se torna desnecessária qualquer recapitulação. Entretanto, pra quem tiver interesse, recomendo o texto citado, que apresenta um resumo de cada um dos dias do seqüestro sem sensacionalismo. É só clicar no link do primeiro parágrafo!

O assunto sobre o qual quero comentar também já foi discutido em algumas mídias, e até na televisão. Estou falando da interferência de algumas emissoras no caso, em especial a RedeTV!, com o programa "A Tarde é Sua". O texto do Diário que indiquei é claro:

"Na noite de segunda-feira, os garotos Iago e Vitor [que faziam trabalho de escola com Eloá no momento em que Lindemberg invadiu o local] são libertados. No dia seguinte, (...) Naiara [a amiga da menina] é libertada.

Na quarta, as negociações emperram. Lindemberg dá entrevistas por telefone a emissoras de TV e avisa à jornalista Sônia Abrão, da RedeTV!, que vai matar Eloá caso a polícia invada o local."

Vamos "começar pelo começo": o rapaz era conhecido da família e, num momento de total desequilíbrio, invadiu o apartamento da ex-namorada. Nesse momento, ninguém imaginava que o seqüestro teria a repercussão que teve – provavelmente nem ele mesmo imaginava. E ninguém imaginava porque a história estava mais para um acesso de violência extrema de um ex-namorado rejeitado que para um seqüestro propriamente dito!

O contexto mudou de verdade na quarta-feira. Claro que antes da quarta a situação já não tinha mais nada de "acesso de violência", mesmo porque já havia quase 48 horas em que Eloá estava em cárcere privado. Mas foi a partir da quarta que o crime passou a ser usado como atrativo de audiência e que "a mídia passou a agir como um combustível para insanidade do seqüestrador", como avalia Thais Naldoni em sua coluna no Portal Imprensa.

Globo e Folha Online, segundo a jornalista, entrevistaram Lindemberg, visivelmente despreparado para esse tipo de contato. A Record também exibiu entrevista em seu telejornal local, mas nenhuma intervenção se compara ao "show de horrores" – o termo usado por Thais é perfeito – de Sônia Abrão.

A produção do programa da RedeTV! conseguiu o telefone da casa com familiares, ligou para a casa da menina e conversou ao vivo com ela e o seqüestrador. Matéria do Portal Imprensa publicada na data em que o programa foi ao ar relata que a apresentadora "se colocou na posição de 'intermediária' de contatos entre o seqüestrador e sua família, que pediu para que ele se entregasse porque sua mãe estaria 'sofrendo muito'".

Repito as palavras da Thais Naldoni:

"Faça agora um exercício de imaginação: o rapaz estava acuado. A polícia cercava todo o local e não havia para onde fugir. Ele estava armado, cansado e instável, com medo de ser preso, de ser morto. Em meio às negociações, vários veículos de mídia fazem contato com o jovem. Será que tais telefonemas não afetaram o estado de ânimo do rapaz? Será que isso não deu a ele a sensação de poder?"

Diante do espetáculo vergonhoso que Sônia Abrão protagonizou, José Luiz Datena usou espaço de seu "Brasil Urgente" no mesmo dia para repudiar a atitude da colega. Ele pode nem ser o jornalista mais apto a criticar sensacionalismo, mas nesse caso específico pôde indignar-se com o episódio. Segundo a coluna Zapping de 17/10, Datena disse que "quem faz esse tipo de entrevista é jornalista irresponsável porque não tem a menor capacidade de negociar com um seqüestrador, que já está nervoso". O site NaTelinha informou que Datena não citou o nome da apresentadora e nem da emissora em suas críticas ao vivo, mas que "Sônia Abrão entendeu o recado e optou por rebater" o âncora do "Brasil Urgente".

Segundo o site, "a apresentadora disse que a entrevista não atrapalhou as negociações da polícia e ainda ironizou o jornalista ao dizer que seu trabalho 'não é piscar luzinha e conversar com a janela' - uma referência ao programa da Datena que costuma medir a audiência pelo número de luzes que são piscadas nos apartamentos e casas a seu pedido". A coluna Zapping também reproduziu parte da fala de Sônia Abrão: "Não vou aceitar que falem que nossa entrevista prejudicou as negociações. Se você tem o costume de falar mal de seus colegas, eu não tenho. Você era meu amigo, agora é ex-amigo, não é mais nada. Você é um equivocado".

No sábado (18/10), quando já se sabia do desfecho trágico do seqüestro e do coma irreversível de Eloá, Sônia Abrão deu entrevista à Folha Online, onde alegou estar com a "consciência tranqüila" por não considerar que fez "algo que colocasse a situação em risco".

O professor da pós-graduação em Jornalismo da ECA-USP, da Cásper Líbero, ouvidor-geral da EBC e apresentador do programa "Ver TV" (TV Câmara), Laurindo Leal Filho, afirmou, de acordo com reportagem do Comunique-se, que a concessão da RedeTV! poderia ser cassada por conta da entrevista. O professor afirma que a intervenção das emissoras "na hora do crime" é ilegal e indevida. "Cabe a uma emissora que tem concessão pública atuar de forma a informar, entreter e educar a população, como está na Constituição. As emissoras saíram da informação e passaram a interferir", disse ao site.

De acordo com o professor, a atuação da mídia feriu o artigo 221 da Constituição, que determina:

"A produção e a programação das emissoras de rádio e televisão atenderão aos seguintes princípios:

I - preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas;II - promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive sua divulgação;III - regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei;IV - respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família."

A argumentação de Laurindo Leal Filho teve forte repercussão nos comentários do site. Enquanto algumas pessoas reconheciam a diferença entre entrevistar um criminoso e entrevistar um criminoso no momento do crime (e o quanto a segunda situação gera uma responsabilidade totalmente diferente), alguns profissionais da área alegavam que o professor estava defendendo a censura ou que sua posição refletia sua suposta visão "chapa-branca". O editor chefe do Jornal da Tarde, Marcelo Moreira, disse que "tirando a pieguice da Sônia Abrão, todas as entrevistas ficaram dentro do limite da ética" e que os comentários críticos à atuação da mídia partiam "de gente que nunca fez jornalismo e, pelo jeito, nem fará". O jornalista João Leite Neto, que apresentou o "Cidade Alerta" nos anos 90, avaliou os futuros jornalistas como "meros repetidores das mal compreendidas aulas, ministradas por professores que, em alguns casos, nunca entraram em uma redação". Marcelo Moreira disse que alguns professores "estão tentando formar comunicólogos, e não jornalistas".

Diante disso, quem sou eu para criticar alguém? Não sou jornalista e nem comunicólogo. Vou ser "marketeiro" - isso se me formar no curso que estou fazendo! Mas vejo como óbvia a existência de responsabilidade da mídia nessa história. Como é possível alguém querer se isentar do desfecho do crime se interferiu diretamente no desenrolar da situação? Aí vem um pessoal dizer que jornalismo é isso, e que qualquer crítica é censura ou exaltação de jornalismo "chapa-branca".

Então jornalismo "de verdade" é esse praticado pela experiente Sônia Abrão no "A Tarde é Sua", por exemplo. Afinal, a preocupação do programa é 100% com a notícia, não? Não devia ter ninguém na RedeTV! conectado à medição prévia do IBOPE na quarta-feira passada comemorando o resultado (e pouco se importando se iam matar a menina ou não). Que pergunta besta! É claro que não, é um programa jornalístico, que não tem mershandising, não usa as médias de audiência – influenciadas por picos esporádicos como esse – para cobrar mais por inserções comerciais... um programa que não tem nada disso!

E os telejornais das outras redes? Também não têm nenhuma preocupação com audiência! Entrevistaram o seqüestrador por amor à notícia, pelo compromisso com a informação, cientes de que desempenhavam uma função social importantíssima (e que não estavam sendo chapa-branca, claro)! Reconhecimento por uma imagem "exclusiva" a ser explorada enquanto der audiência é coisa que ninguém procura! Deve ser por isso que Brito Jr. agradeceu à audiência no "Hoje em Dia" e disse que "os detalhes você só vê na Record"!

Cassação da RedeTV! é uma coisa que não tem chance de acontecer, por mais que pudesse ser legal. Governo nenhum cassaria uma rede de televisão, por pior que fosse a conduta da empresa dona das outorgas.

Você já pensou como seria se uma situação dessas acontecesse hoje? Não duvido que todos os outros veículos fossem "solidários" à emissora cassada e fizessem uma "campanha" contra o governo tão grande que a possibilidade de um impeachment não seria descartada. Apareceria tanto escândalo, tanta denúncia!

Achismo? Pode ser. Mas duvido que algum governo pague pra ver. Por mais questionável que seja a postura de determinada emissora - ou mesmo sua própria criação!

SAIBA MAIS
http://portalimprensa.uol.com.br/colunistas/colunas/2008/10/18/imprensa311.shtml
http://www.comuniquese.com.br/conteudo/newsshow.asp?op2=&op3=&editoria=8&idnot=48999
http://midiaclipping.blogspot.com/2008/05/stj-suspende-julgamento-sobre-sucesso.html

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